A beleza dos santos

O cristianismo não é uma religião, filosofia ou visão espiritualista do mundo. Isto significa que o corpo tem um papel fundamental. Sem o corpo não há cristãos, e mais ainda: não há cristianismo…

Manfredo Ferrari / CC BY-SA

Duas premissas para entender a mortificação cristã

Para abordar este tema, no ambiente mais ou menos polêmico em que ele surge hoje em dia, devemos partir de duas premissas. A primeira, de importância essencial, é ter em conta que o corpo desempenha um papel central e insubstituível na vida de fé. O cristianismo não é uma religião, filosofia ou visão espiritualista do mundo. Isto é, o corpo representa um papel fundamental. Sem corpo não há cristãos, e mais ainda: não há cristianismo. Ao mesmo tempo, o corpo, no conjunto da pessoa, tem as suas regras, a sua autonomia e os seus limites, com os quais é preciso contar.

A segunda premissa é mais circunstancial. Sabemos que uma imagem vale mais do que muitas palavras. Se temos na retina a flagelação de uma pessoa, não entenderemos nada. Isso não é mortificação corporal, mas masoquismo. A mortificação tem um motivo além de si mesma e, também, um motivo bom. Caso contrário, não é mortificação cristã. No cristianismo a mortificação não procura a dor pela dor. Assim, para entender a mortificação do corpo, é necessário colocá-la junto da imagem de um santo: fica bem com o sorriso do Papa João Paulo II ou com a paz de Teresa de Calcutá entre os mais pobres dos pobres.

Quando aprofundamos o assunto, valorizando as duas premissas, verificamos que a mortificação do corpo se refere fundamentalmente a duas motivações: o autocontrole ou domínio de si próprio e o embelezamento da pessoa.

1. O corpo revela a pessoa e é o meio de exprimir os seus sentimentos, a sua liberdade e o seu amor.

A pessoa é o seu corpo, mas não é só o seu corpo. O mundo interior de cada pessoa não está feito de tecidos e fluidos, mas de pensamentos, amores e sentimentos. Por isso, já diziam os gregos que o homem é, de certo modo, todas as coisas, um microcosmos, um mundo. Na pessoa humana existe o nível biológico, mas também o nível psicológico e o espiritual. Apesar da pessoa ser uma unidade, observamos na nossa vida a existência de forças ou tensões diversas que nos conduzem a distintos objetivos e que é preciso controlar e integrar na unidade pessoal. Por exemplo, tenho vontade de fumar (o corpo pede isso) mas sei (aqui aparece a inteligência) que não me convém ou que está proibido e posso receber uma multa. Então, decido fumar ou não, e imponho esta decisão à minha atuação (isto seria a vontade).

Para controlar e dirigir todas as forças ou tensões que aparecem na minha vida, para as integrar ao redor da minha identidade pessoal de modo harmonioso, é preciso educar a inteligência e fortalecer a vontade. Aqui é necessária a mortificação.

Para conseguir o autodomínio ou senhorio sobre o meu corpo é precisa a mortificação, que pode ser descrita como a negação voluntária de um desejo (tenho vontade de fumar, mas não fumo) ou a afirmação voluntária de algo que não desejo (não desejo comer isto porque não gosto, mas é o que tem e como; não tenho vontade de começar a estudar ou a trabalhar, mas começo; não desejo levantar, mas levanto-me). A mortificação do corpo é um ato livre forjado por uma decisão da vontade, iluminada pela inteligência (que proporciona o motivo dessa decisão), e que contraria as apetências ou gostos do corpo num ato determinado.

Porém, porque preciso controlar o meu corpo? Ou melhor, para que procuro controlar o corpo? Os motivos podem ser muito variados, como, por exemplo, a educação ou a cortesia humana. Nesse caso, devo mortificar o meu corpo para não cair em atitudes que perturbem a paz e a convivência com os que estão mais próximos.

Entre as múltiplas razões que levam a mortificar ou submeter − ou, se se preferir, reprimir − o corpo, julgo que a razão fundamental é o pedir ao corpo um serviço que está acima das suas possibilidades iniciais ou habituais. Podemos explicar isto com alguns exemplos. Neste mundo, em especial nas sociedades mais desenvolvidas, costumamos mortificar o corpo principalmente na relação com o trabalho profissional. Suportando o frio ou o calor (especialmente nas pessoas que trabalham à intempérie); superando o cansaço e o sono: acontece a quase todo o mundo, em cada manhã ao levantar-se; a quem é que o corpo não pede para ficar um pouco mais na cama, todos ou quase todos os dias? E nos trabalhos de atendimento direto ao público: não me posso permitir fazer cara feia e omitir um sorriso, mesmo que o corpo peça para nos embravecermos ou simplesmente não ligar a algo ou a alguém! E muitos projetos estão além das nossas forças e exigem que mortifiquemos o corpo, em períodos determinados ou sempre, em certos trabalhos.

Naturalmente, também devemos mortificar o nosso corpo para cumprir outros deveres, especialmente os relacionados com a família e com os amigos. Na prática, todos os dias, devemos mortificar o corpo e os seus apetites, a favor das necessidades dos outros: o pai e a mãe entre eles, e ambos com os filhos pequenos; os namorados; os amigos; os vizinhos. Não estamos sozinhos neste mundo e a relação com os outros leva muitas vezes a colocar as coisas dos outros à frente das nossas, e, portanto, a mortificar os nossos gostos pessoais. Se não fizermos isto, em pouco tempo acabaremos ficando realmente sós.

Hoje em dia, a mortificação corporal mais severa é, talvez a que se exige aos atletas. Devem viver, atingindo e superando o limite das possibilidades do corpo humano. Para isso, têm de mortificar o corpo até à exaustão nas suas sessões diárias de treino. Além disso, têm de fazer uma dieta rigorosa sem se permitirem excessos nem caprichos, um horário estável e regular que limita a diversão. É algo voluntário, mas que exige muita mortificação. Pensemos nas discussões e críticas, às vezes com fundamento, sobre se Cristiano Ronaldo está ou não mais gordo, ou se os jogadores de futebol devem sair à noite. Ainda que o caso dos jogadores de futebol seja um pouco especial, se pensarmos nos ciclistas, tenistas, nadadores, atletas, alpinistas ou ginastas, não teremos dúvidas da dureza da sua vida, nos treinos e nas competições.

Às vezes justificamos todo esse esforço dos atletas profissionais, dizendo que eles são os melhores ou que representam a excelência da humanidade. São personagens de elite, eleitos para a glória. Portanto, pode-se pedir-lhes e até exigir-lhes toda essa submissão ou mortificação do corpo, enquanto nós contemplamos essas maravilhas no sofá em frente da televisão. Mas, segundo o cristianismo, todos fomos eleitos para a glória e por isso, cada pessoa é tratada por Deus como o melhor filho, como se fosse único.

Retomamos assim o tema que nos ocupa. A mortificação corporal cristã pode enquadrar-se neste sentido de exercício ou treino para controlar o corpo, com o propósito de o dispor para o serviço de Deus e dos outros. Na sociedade em que vivemos, tem sentido mortificar o corpo para controlar as suas forças e integrá-las para a execução de um projeto profissional, para a realização de tarefas ou deveres relacionados com os outros, para a consecução de metas esportivas, etc. No entanto, alguns podem estranhar a mortificação do corpo para conseguir um objetivo espiritual, religioso, ou a renúncia a um gosto sensível ou material, para apreciar com mais facilidade um valor espiritual. É curioso, apesar de ser explicável pelo materialismo prático da nossa cultura.

A vida cristã ensina-nos que o ideal de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, não se realiza automaticamente, e necessita de compromisso pessoal, de luta e de esforço. Surge então a necessidade da mortificação do corpo, para o comprometer por completo na unidade íntima da pessoa, e assim possa dar o melhor de si.

Existem tendências desordenadas que conduzem a pessoa à sua própria ruína, e é preciso controlá-las. O desejo de satisfação e de prazer, desordenado pelo pecado, leva a coisas que, se as fizéssemos, nos tirariam a paz interior e a comunhão com Deus. Por exemplo, o apetite desordenado pela comida ou pela bebida, a inveja, a crítica ou a intolerância com alguma pessoa (familiar, amigo, vizinho ou colega), a preguiça ante os próprios deveres, etc. Além disto, a excelência do ideal cristão, amar com todas as forças e com todas as ações, exige a prática intensa de todas as virtudes, a começar pela caridade. Ora isto não é possível se não nos impomos a nós mesmos coisas, por assim dizer, desagradáveis, que limitam a nossa comodidade e repouso, para nos obrigar ao compromisso e ao trabalho pelos outros. Para poder avançar na vida cristã é precisa a mortificação, como acontece em muitos outros aspectos da vida humana (o esporte, o trabalho ou a carreira profissional, a estética pessoal, etc.). Muda a motivação: o amor a Deus e às outras pessoas.

2. Uma beleza que foge da uniformidade e da uniformização

Passemos agora para o segundo ponto. Parece-me que o outro motivo fundamental da mortificação corporal é o adorno do corpo ou, se preferirmos, o corpo como ornamento. Com duas precisões. Falamos de adorno não no sentido de algo bonito, mas supérfluo, mas como algo essencial ou transcendental, isto é, como beleza. Por outro lado, sublinhamos que a beleza do corpo expressa e é parte, da beleza da pessoa. Daí que seja sempre uma beleza individual e singular, própria de cada pessoa, distante da uniformidade e da uniformização dos critérios gerais.

Mas para conseguir a beleza do corpo, a mortificação corporal também é necessária. Para conseguir um corpo esbelto, temos de comer muitos iogurtes light, mas ao mesmo tempo, temos de deixar de comer muitas outras coisas agradáveis e saborosas, que a atenção e o gosto reclamam, mas às quais é preciso responder com um rotundo não.

Em certas circunstâncias, a beleza estética exige uma mortificação corporal mais concreta. Aqui entram as cirurgias violentas e agressivas, mas com resultados por vezes aceitáveis: a lipoaspiração, as operações plásticas na face, no nariz, etc. Temos aqui novamente a mortificação corporal, por um motivo que transcende e supera o sacrifício: a beleza do corpo.

Neste âmbito entra também todo o tema das exigências da moda, a respeito da incomodidade (determinados saltos não são o melhor para os pés nem para o caminhante, mas a beleza justifica essa mortificação), no frio ou no calor; o costume (não se pode esquecer o choro da menina quando lhe fazem um pequeno furo nas orelhas). Neste contexto, merece uma atenção especial o ornamento do corpo mediante o piercing, as tatuagens, etc.

Para o cristão, o adorno do corpo, o corpo como adorno e a manifestação da pessoa é fundamental. Esse ornamento manifesta-se no sorriso, no esforço, às vezes heroico, pelo próximo (entre os esposos ou entre amigos; o pai ou a mãe pelos seus filhos), no compartilhar a pobreza com o pobre e a doença com o enfermo, etc. Como se vê, é um ornamento da pessoa, manifestado de modo visível, é aquilo a que sempre se chamou obras de misericórdia corporais. Mas como se trata de um corpo animado pelo espírito, pela alma, na unidade da pessoa, o adorno é também espiritual: o adorno do corpo pobre ou doente é o amor solidário desse corpo, dessa pessoa.

É principalmente neste sentido de ornamento e beleza espiritual do corpo, que se entendeu a mortificação corporal do cristão. E está também diretamente relacionada com a Paixão de Jesus Cristo. Trata-se de adornar o corpo em relação a Jesus Cristo Crucificado. O uso tradicional na Igreja de práticas de penitência corporal, como o cilício ou, no caso que nos ocupa, as disciplinas, está unido a esse ornamentar o corpo espiritualmente com os sofrimentos e as chagas de Cristo, compartilhando no nosso corpo as dores de Jesus.

Para compreender isto é preciso tentar entender o sacrifício de Cristo. Só assim pode haver tolerância e respeito para com o cristão. Para a nossa sociedade, este é o aspecto da mortificação corporal que provavelmente mais custa compreender. Talvez porque as disciplinas ou o cilício sejam vistos como castigo do corpo.

Cristo sofre uma violência brutal por parte dos soldados e do povo: a prisão, os insultos, a flagelação, a coroação de espinhos, o caminho da cruz e a crucificação… Mas esta descrição não explica quase nada da realidade profunda que está acontecendo aí.

O que acontece realmente é que Cristo transforma a violência brutal da humanidade ao longo da História no amor total a Deus e aos homens. Cristo não sofre apenas a violência de um condenado à morte, mas Ele, que é o dono da Sua vida, oferece-a, e oferece-a por amor à humanidade, aos pecadores, aos marginalizados, aos pobres. Por isso o Crucificado ornamenta: exprime através do seu corpo mortificado a coroa do amor não interesseiro, mas total, a Deus e aos outros.

Cristo sofre porque quer, e quer porque, com o seu sofrimento, se une a cada pessoa que sofre, acompanha-a, sustenta-a e dá-lhe esperança. Não se pode pedir ao cristão que renuncie à cruz (o sinal do cristão é a santa cruz), nem que renuncie ao crucifixo.

O sofrimento do cristão, e, nele incluído, a mortificação corporal, é a manifestação de uma realidade mais profunda: a sua solidariedade e a proximidade com o sofrimento de todos os homens e de cada um deles, ao longo da História e da sua vida. Não é um castigo do corpo, como se o corpo fosse mau e desprezível, muito pelo contrário. É um ornamento do corpo que faz com que cada pessoa seja mais bela, porque manifesta na sua carne o amor solidário e a união com Cristo e com a humanidade sofredora, necessitada, marginalizada, esquecida.

Não é obrigatório ter um corpo modelo, nem seguir a moda, mesmo que seja incômoda, nem usar piercings ou ter tatuagens, como também não é obrigatório usar o cilício ou as disciplinas, como mortificação corporal.

Nem esses são os únicos meios para ornamentar o corpo. Mas são meios utilizados por muitas pessoas, tanto hoje como no passado, e que provaram a sua eficácia para atingir uma beleza particular. Temos, sobretudo, o exemplo de Cristo e de muitos mártires e também o exemplo da vida e ação de muitos santos. Não é fácil dedicar a vida a Deus e ao próximo, antes e acima do que o próprio eu pode desejar: cuidar e viver entre os mais pobres dos pobres, não só um dia, mas um dia e outro, a vida inteira, etc.

Porque é que vamos estigmatizar alguém ou julgar a priori, com um certo grau de intolerância? É melhor procurarmos compreender as razões que pode ter cada um para viver e atuar como bem entender. Se todos e cada um, procurarmos ser pessoalmente melhores, construiremos uma civilização e um mundo melhor.

Pablo Marti del Moral